Uma cartografia do atravessamento entre documentos, educação prisional e gênero no Brasil
Una cartografía de la cruce entre documentos, educación carcelária y género en Brasil
A cartography of the crossing between documents, prison education and gender in Brazil
Luisa Bertrami D’Angelo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
luisabertrami@gmail.com
Doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, formada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
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Resumen
O presente trabalho tem como objetivo cartografar leis, resoluções e outros documentos sobre educação nas prisões buscando identificar de que modos o gênero aparece como elemento no processo de produção de políticas, diretrizes e ações sobre o tema no Brasil. A Lei de Execuções Penais (LEP) brasileira garante o acesso à educação para pessoas privadas de liberdade como um direito e a escola na prisão cumpre não só a tarefa de garantir o acesso a este direito como também opera uma série de movimentações no espaço, no tempo e nas relações tecidas na prisão já que ir à escola demanda locomover-se pela unidade prisional. Partindo da noção de gênero como categoria de análise e da leitura da LEP, das políticas de educação para jovens e adultos privados de liberdade, das diretrizes nacionais para educação em prisões e do Plano Estratégico de Educação no Âmbito do Sistema Prisional, propõe-se discutir os modos como gênero, direito, educação e a produção de normativas e documentos articulam-se a uma complexa trama de saberes, poderes e disputas que deixam ver as forças que produzem a prisão.
Palavras-chave
educação, gênero, sistema prisional, cartografia
Resumen
Este documento tiene como objetivo dibujar una cartografía de leyes, resoluciones y otros documentos sobre educación en las cárceles, buscando identificar de qué manera el género aparece como un productor de políticas, directrices y acciones sobre el tema. La Ley de Ejecución Penal de Brasil (LEP) garantiza el acceso a la educación de las personas privadas de libertad como un derecho y la escuela penitenciaria no solo cumple la tarea de garantizar el acceso a este derecho, sino que también opera una serie de movimientos en el espacio, en el tiempo y las relaciones desde que asistió a la escuela exige moverse por la unidad de la prisión. Partiendo de la noción de género como categoría de análisis y de la lectura de la LEP se propone discutir las políticas educativas para jóvenes y adultos privados de libertad, las pautas nacionales para la educación en las cárceles y el Plan Estratégico de Educación dentro del Sistema Penitenciario discutimos las formas en que el género, la ley, la educación y la producción de normas y documentos se articulan con una compleja red de conocimientos, poderes y disputas que revelan las fuerzas que producen la prisión.
Palabras-clave
educación, género, sistema carcelario, cartografía
Abstract
This article intends to map laws, resolutions and other documents related to prison education in order to identify how gender produces guidelines and actions in the prison education field. The brazilian penal law ensures that people doing time in prison have the right to access schools and the schools inside the prison units not only enables the guarantee of this right but also takes place into a web that links spaces, times and relationships, since going to school allows one to walk around the prison unit. Thinking gender as an analysis category and through the analysis of brazilian laws, of the national education policies for young people and adults deprived of their liberty and of the Strategic Educational Plan in the Prisional System, we intend to discuss how gender, rights, education and documents themselves produce a web of knowledges, powers and disputes that help us see the forces that create prison.
Keywords
education, gender, prisional system, cartography
Recepción
Aceptación
Breve panorama do sistema prisional brasileiro
Segundo dados do mais recente levantamento de informações sobre o sistema penitenciário do Brasil (BRASIL, 2016), o país é o terceiro país com maior número de pessoas privadas de liberdade do mundo, com mais de 726 mil presos(as). A taxa de ocupação dos presídios é de 197,4%, número que aponta para os processos de superencarceramento que o Brasil, assim como o resto do mundo, produz/vê se desenrolar. De 1990 até 2016, o número de pessoas privadas de liberdade no Brasil cresceu 707%, havendo importantes intensificações nestes números a partir de 2006, ano em que entrou em vigor a lei 11.343, conhecida como nova lei de drogas. Ademais, não é irrelevante pontuar que 40% das pessoas privadas de liberdade no país são presos(as) provisórios(as), ou seja, não foram julgados. 74% destas pessoas têm entre 18 e 34 anos, 64% são negras, 51% não completaram o ensino fundamental.
A política de “guerra às drogas”, importada dos Estados Unidos da América e responsável, em grande parte, pelos processos de superencarceramento no Brasil, é um elemento importante para compreender de que maneiras se articulam as tramas que produzem a privação de liberdade e as políticas para o sistema prisional, e é particularmente relevante desde uma perspectiva de gênero. Dados oficiais indicam que, enquanto 26% dos homens estão presos pelo tipo penal “tráfico de drogas”, 62% das mulheres encontram-se privadas de liberdade devido à mesma acusação. O crescimento populacional das unidades prisionais brasileiras caracteriza-se diferenciadamente no que diz respeito aos homens e às mulheres: entre os anos 2000 e o ano de 2016, houve um crescimento de 293% no número de homens presos e de 656% no número de mulheres presas.
Scott (1994) aponta que falar de gênero não é falar de mulheres, mas sim pensar em como se dão e se articulam as relações entre homens e mulheres e em como as inscrições de diferenças entre/em corpos sexuados se traduz em desigualdades. Neste sentido, Rubin (1975) chama a atenção para o fato de que falar de gênero é falar de jogos de poder e interesses políticos. Gênero, aqui, portanto, está sendo tratado como categoria de análise (Scott, 1995), na medida em que é um elemento, um analisador (Rodrigues, 2005) que permite acompanhar as forças que produzem determinadas práticas, discursos e políticas. Nas palavras de Foucault (2008), poderia se dizer que gênero é um dispositivo produtor de subjetividades. Desta forma, não é possível falar de gênero sem falar sobre as práticas que organizam um mundo – ou seja, no caso do sistema prisional, não é possível pensar gênero deslocado daquilo que é construído na articulação entre instituições, discursos e práticas específicos. Da mesma forma, Angela Davis (2018) aponta que tanto prisões femininas quanto masculinas são marcadas pelo gênero, na medida em que gênero, aqui, se refere às articulações que produzem criminosos, criminosas, traficantes, relações, trocas, afetos, subjetividades.
Cartografia: o ato de cartografar como aposta política e metodológica
Documentos não são meros pedaços de papel ou um emaranhado de letras disponíveis em um site ou banco de dados – ainda mais quando se fala sobre o sistema prisional, local em que os documentos tomam valor vivo, pois é a partir deles que se prende, se solta, se garante direitos, se comunica. Quando me proponho a cartografar documentos, estou apostando que: 1) documentos narram histórias, disputas e políticas; 2) é possível acompanhar estes movimentos que desembocam num documento escrito; e 3) aquilo que se materializa em um documento desdobra-se em práticas que atravessam vidas e outras histórias. Padovani (2015, p. 111) fala de um “corpos dos papeis” ao falar das cartas e documentos que entrelaçam as vidas de mulheres presas em São Paulo e em Barcelona e os processos de estado que se desenrolam nas prisões, e poderíamos aqui pensar, em um paralelo com Padovani, um corpo destes documentos cuja função é criar, instituir e instaurar diretrizes e políticas educacionais no sistema prisional.
A cartografia é uma metodologia, mas é também uma política e uma ética. Para Suely Rolnik (1993), o trajeto cartográfico é:
(…) Ético porque não se trata do rigor de um conjunto de regras tomadas como um valor em si (um método), nem de um sistema de verdades tomadas como valor em si (um campo de saber): ambos são de ordem moral. O que estou definindo como ético é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a partir dessas diferenças. As verdades que se criam com este tipo de rigor, assim como as regras que se adotou para criá-las, só têm valor enquanto conduzidas e exigidas pelas marcas. Estético porque este não é o rigor do domínio de um campo já dado (campo de saber), mas sim o da criação de um campo, criação que encarna as marcas no corpo do pensamento, como numa obra de arte. Político porque este rigor é o de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir. (Rolnik, 1993, p. 6-7)
Cartografar, portanto, é acompanhar processos, é buscar ver de que modos forças diferentes, micro e macropolíticas, se articulam, se engendram, engendram outras forças, agenciam ações, constroem barreiras, enfim, é identificar e percorrer os caminhos possíveis e construir outros caminhos ainda.
Ler um documento, assim, é ler as forças e os jogos que tornam possível que um documento seja o que ele é e que as propostas nele contidas sejam o que são.
Prender e educar? Entre tensões e brechas possíveis
Talvez a primeira questão se que coloque para aquelas(es) que buscam se debruçar sobre a temática de educação nas prisões seja: é possível fazer coexistir estas duas palavras? Mais do que palavras distintas, “educação” e “prisão”, quando lado a lado, acionam uma série de disputas, ambivalências e desafios. Mas há algumas aproximações possíveis. Poderia se pensar esta aproximação a partir da noção de instituição e das discussões goffmanianas a respeito das mesmas, caso “educação” fosse reduzida ao estabelecimento “escola” ou caso “instituição” fosse pensada de uma maneira mais ampla, assim como pensamos a “família” como uma instituição. Há, ainda, a possibilidade de aproximar a ideia de educação da ideia de “ressocialização”, caso estivéssemos partindo de uma perspectiva que vê na prisão o objetivo de ressocializar. Julião (2011), inclusive, aponta que a ideia de trabalho na prisão foi instituída no Brasil concomitantemente à reforma da ideia de prisão, cujo objetivo, em uma perspectiva “humanizadora”, seria reeducar. Mas, se em algum momento foi possível dizer que as funções da prisão dividiam-se entre funções declaradas (a “ressocialização”) e funções não-declaradas (a gestão dos corpos de determinados grupos e sujeitos), hoje, e cada vez mais, aquelas que eram antes as funções não-declaradas evidenciam-se diante dos nossos olhos (Foucault, 1999; Bitencourt, 2011). Como, então, pensar aproximações possíveis entre estas duas palavras?
Ireland (2011) aponta que a educação nas prisões deve ser pensada para além do espaço da escola, buscando compreender as limitações e potencialidades deste contexto específico para a construção de ações educativas. O autor ainda indica que é possível e potente pensar a educação nas prisões como uma modalidade de Educação para Jovens e Adultos (EJA) que, conforme aponta Gadotti (2009), deve privilegiar os grupos tidos como vulneráveis, dentre os quais se encaixariam as pessoas privadas de liberdade. Onofre (2015), por sua vez, aponta para a invisibilidade desta modalidade de EJA e para a heterogeneidade das pessoas que acessam este tipo de educação, bem como as peculiaridades que o sistema prisional impõe a esta modalidade de ensino.
Tal como as disputas que atravessam a prevenção e promoção de saúde nas prisões, a os processos educativos veem-se constantemente atravessados pela demanda de Segurança (Onofre; Julião, 2013).
A complexidade e ambivalência que unem discursivamente “prender” e “educar” é similar àquelas que unem “cuidado em saúde” e “punição” nos manicômios judiciários. É preciso partir desta complexidade para pensar as políticas, diretrizes e resoluções que sustentam a educação nas prisão, pois ao mesmo tempo em que são as normativas que criam as práticas, as práticas também operam de modo a construir normativas, em um constante atravessamento.
Leis, diretrizes e políticas públicas: gênero operando documentos e vidas
A Lei de Execuções Penais (LEP), promulgada em 1984, cujo objetivo é “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, garante que “não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política”. (Brasil, 1984). Em sua seção V, versa sobre a assistência educacional nos níveis fundamental, médio e superior, além de prever a educação profissional, cursos supletivos de educação de jovens e adultos e a utilização de novas tecnologias de ensino. Chama a atenção, no entanto, que o parágrafo único do artigo 19 afirma que “A mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição”, ainda que não se especifique propriamente quais seriam as “condições” das mulheres que necessitariam de formação profissional adequada.
Este parágrafo retoma discussões que, no Brasil, datam da década de 1940, quando começaram a ser construídas as primeiras prisões femininas no país. É, então, no contexto da efervescência de debates em torno da ideia de que era urgente uma reforma no sistema penitenciário que foi possível a criação de presídios exclusivamente femininos. Em seu artigo 2º, o Código Penal de 1940 explicitava a necessidade de se separar homens e mulheres dentro do sistema, o que culminou na edificação de presídios femininos no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Pernambuco, com o objetivo de cumprir o que estava previsto em lei. Neste momento, importantes nomes de juristas e profissionais envolvidos com este campo atestaram a necessidade desta separação, sob diferentes argumentos – uma vez que as mulheres encontravam-se em situação degradante nos presídios masculinos e era urgente um espaço específico para elas, inclusive para que as penitenciárias femininas possibilitassem às mulheres cumprindo longas penas uma educação para atividades femininas (Andrade, 2011). A proposta de criação de um presídio exclusivamente feminino resultou, em 1942, na criação da Penitenciária de Mulheres do Distrito Federal, no Rio de Janeiro.
A opção pela criação de espaços prisionais separados para homens e mulheres remete ao momento em que se pretendia dar fim à “velha”, “ultrapassada” e “bárbara” política prisional de então, em conformidade com a nova ideologia penal. (Andrade, 2011) A Penitenciária de Mulheres é, ao mesmo tempo, efeito e modelo desta reforma (Lima, 1983). Foi com o Código Penal de 1940 que o Estado brasileiro passou a reconhecer a figura do “indivíduo” como objeto da ação estatal. É neste sentido, por exemplo, que a reforma penitenciária no Brasil tinha a preocupação de reprimir a criminalidade de modo que a ação do indivíduo não viesse a atrapalhar a coletividade – coletividade esta formada, por sua vez, também por indivíduos, mas estes como “indivíduos da legalidade”, ameaçados pelas infrações cometidas por terceiros (Lima, 1983).
Considerando que “é a seletividade do controle social, que definirá que ordem se torna desejável ser defendida, produzindo seus criminosos e seus crimes” (Reishoffer, Bicalho, 2009, p. 429), é o surgimento de “novas figuras delituosas” (Lima, 1983, p. 24) que gera a necessidade da produção de “novos mecanismos de detenção” (Lima, 1983, p. 27). A mulher, neste momento, torna-se uma destas novas figuras a serem capturadas pelos novos mecanismos de detenção. A ideia, conforme aponta Foucault (2010), de punir melhor, ou seja, de sofisticar os mecanismos de punição, encontra aqui terreno fértil, uma vez que vê na possibilidade da criação de uma penitenciária para mulheres uma chance de propor um projeto que seja reflexo das novas economias penais da época. Conforme aponta Lima (1983), ao analisar um artigo escrito por Vitorio Caneppa, diretor da penitenciária de mulheres durante as décadas de 40/50, a opinião de especialistas converge no sentido de atribuir a maior participação de mulheres em atividades criminosas à ocupação de postos de trabalho, apontando para o “perigo” potencial das mulheres que se dedicam à atividade econômica (Lima, 1983, p. 32), fora de seus lugares já fixados no lar.
Como vemos ainda hoje, a seletividade do sistema volta-se para determinadas classes e o aparelho prisional torna-se responsável por não só reproduzir, mas também produzir o que chamam de delinquência através da retenção seletiva de indivíduos vindos das populações mais pobres. Segundo esta autora, a criação da Penitenciária de Mulheres, então, configura-se como parte de um projeto, de uma estratégia, que amplia o número de pessoas detidas e que, num processo de retroalimentação, reforça a necessidade da existência deste dispositivo.
As extensas pesquisas feitas por Elça Mendonça Lima (1983) e Bruna Andrade (2011) apresentam um importante panorama do que foi o início deste processo, e é relevante pensar nas rupturas e continuidades que este processo tem produzido. Nesse sentido, podemos pensar de que maneira este binômio santa-demônio (ou santa-puta) se atualiza hoje. Se a fala de Lemos Brito, importante penitenciarista que defendeu a bandeira da separação de presídios masculinos e femininos, parece arranhar os ouvidos quando afirma que “Darwin mostrou que não só na espécie humana como em toda espécie animal a vivacidade do instinto sexual é atributo da masculinidade” (LIMA, 1983, p. 42), não é tão fácil dizer que estas moralidades a respeito do exercício da sexualidade feminina tenham desaparecido por completo nos dias atuais. Menos ainda se pensarmos no contexto das prisões, como podemos observar frente ao fato de a visita íntima ter sido implementada para os presídios masculinos em 1984 e, para os femininos, apenas em 2001. Além disso, em relatório elaborado pelo Ministério da Justiça em 2008, apenas 9,68% das mulheres presas recebem visita íntima.
Como se vê, as primeiras prisões femininas e masculinas apontam para os objetivos distintos destas duas instituições: “Nesta, a vontade da recuperação é referida à sociedade: se quer recuperar um cidadão. No caso da mulher, a recuperação é referida a um espaço restrito da sociedade: o lar”. (Lima, 1983, p. 44). Ou seja, desde o início da construção das prisões femininas, o gênero tem articulado estratégias políticas de controle dos corpos das mulheres que, num determinado momento, as veem como um perigo iminente aos homens, caso mantidas junto deles; em outro, elas são vistas a partir da necessidade de “reeduca-las” às práticas de gênero convenientes às mulheres e, em outro, por fim, como é o caso atualmente, como sujeitos diversos dos homens que precisam de “ensino profissionalizante adequado”.
Na LEP, o gênero aparece na inflexão de alguns termos, como nos casos em que refere-se a “presos e presas”, mas esta escolha acontece de forma bastante pouco sistemática. Por um lado, se é certo que o gênero linguístico com o qual se refere às pessoas privadas de liberdade não necessariamente indica em si uma questão, o fato de que há estas inflexões apontam, pelo menos, para dois pontos relevantes: o primeiro, para inúmeros processos de invisibilização das mulheres presas que, mesmo que, conforme apontado, sofram com taxas de encarceramento cada vez mais intensas, são frequentemente colocadas em segundo plano por estarem em menor número absoluto; o segundo, poderia se supor que a demanda, especialmente de movimentos sociais feministas, por uma linguagem não marcada pelo masculino como universal, pode ter tido frutos no que diz respeito a elaboração dos documentos oficiais, especialmente quando notamos que os casos em que esta inflexão de gênero aparece tratam de artigos e parágrafos alterados por lei mais recente, datada de 2015.
A Resolução nº 2 de 19 de maio de 2010 do Conselho Nacional de Educação, que “dispõe sobre as Diretrizes Nacionais para a oferta de educação para jovens e adultos em situação de privação de liberdade nos estabelecimentos penais” (Brasil, 2010) aborda o gênero de uma perspectiva que tem aproximações e distanciamentos do modo como ele aparece na LEP, na medida em que ele aparece, em seu inciso IV do artigo 3º, dentre um conjunto de caracterizações que, visando corresponder às exigências da própria LEP e dos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, afirma que “(…) preverá atendimento diferenciado de acordo com as especificidades de cada medida e/ou regime prisional, considerando as necessidades de inclusão e acessibilidade, bem como as peculiaridades de gênero, raça e etnia, credo, idade e condição social da população atendida”. É importante tecer aproximações e distanciamentos. Assim como a LEP, a resolução parte da premissa de que o gênero implica em “especificidades”, o que não é irrelevante nem tampouco um equívoco, no entanto não se discorre propriamente a respeito de quais seriam estas especificidades. Historicamente, especialmente no que diz respeito às mulheres presas, conforme aponta Padovani (2017. p. 100) ao questionar a “genericidade operativa” do termo “encarceramento feminino”, é comum falar de prisões femininas e mulheres presas a partir da noção de “especificidade”, a partir de uma noção amorfa do termo “mulher” – já colocado em análise por feministas como Butler (2010), Haraway (2013), Davis (2018), Scott (1994), Hooks (2013), dentre muitas outras. Padovani (2015, 2017) chama a atenção para o fato de que, frequentemente, “mulher presa” torna-se também um termo amorfo através do qual se compactam e reduzem inúmeras experiências a órgãos reprodutivos e a atributos de “abandono”, “opressão” e “carência”. A autora ainda aponta que, ainda que a categoria “mulher” possa ser estrategicamente evocada no campo de disputa política,
(…) não podem deixar de, nesse mesmo âmbito, serem contestadas e questionadas. Caso contrário, as retóricas humanitárias correm o risco de reiterarem os mesmos atributos de gênero que edificam as prisões. Atributos que esquadrinham em percentagens homens como criminosos e mulheres como vítimas de seus aliciamentos para a “vida do crime”. Atributos que ao edificarem as instituições de Estado como a prisão e a polícia têm, todavia, efeitos de sangue e carne naqueles que, por fim, não são estatísticas, mas pessoas as quais vivem e morrem, ou são feitas morrer. (Padovani, 2017, p. 101)
Ou seja, se, por um lado, torna-se estratégico em determinados contextos falar sobre “especificidades”, e há relevância em pensar processos educacionais, bem como inúmeros outros, a partir das especificidades de cada sujeito e dos atravessamentos de gênero, classe, raça, território e geração que constituem determinados processos de subjetivação, agenciando determinadas práticas e possibilidades, por outro faz-se relevante, neste complexo campo de disputas no qual gênero opera inúmeras articulações, cuidar para que este processo não reifique as desigualdades e hierarquias de gênero que sustentam a prisão e os processos de aprisionamento.
No Decreto 7.626/11, que “institui o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional” (Brasil, 2011), o gênero toma forma na figura da mãe que tem filho(a) dentro de uma unidade prisional, prevendo o fomento de atendimento educacional para a criança que encontra-se em unidade prisional devido à privação de liberdade da mãe. As questões relativas à sexualidade e maternidade ainda aparecem como centrais nas discussões a respeito de mulheres presas. Além disso, com o cada vez maior número de mulheres chefes de família, especialmente nas camadas populares, a prisão de mulheres põe em debate os desdobramentos da privação de liberdade para as famílias das presas de uma forma geral.
Quando um escrito cria um escritor que faz criar documentos (ou – da escrita de um livro a um projeto educacional de remição de pena): uma experiência em uma unidade prisional no Rio de Janeiro
Em 2017, em uma unidade prisional do Rio de Janeiro, um jovem de 26 anos lançou um livro. Ele cumpria uma longa pena em regime fechado há 4 anos e, matriculado na escola da unidade, foi incentivado por dois professores a manter um registro escrito das coisas que pensava. Surgiu, assim, um livro de crônicas, que me foi apresentado durante uma atividade que realizava junto a um projeto da coordenação de psicologia da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) do Rio de Janeiro chamado “Projeto Vida”. Através de um financiamento coletivo na internet, arrecadamos dinheiro para a produção do livro, que foi lançado na Bienal do livro de 2017 e também em um evento interno da unidade, considerando que a presença do autor no lançamento do livro foi negada pelo sistema de justiça brasileiro. O lançamento do livro, além de incentivar outros presos a escrevem também, acabou se desdobrando em um projeto cultural dentro da unidade, coordenado pelo autor e que envolvia atividades de leitura, escrita, teatro e música, estas últimas com a participação de presos com habilidades específicas nessas áreas.
Se foram documentos os responsáveis por negar sua ida ao lançamento de seu próprio livro, foram também documentos que transformaram seu projeto cultural em um trabalho classificado que permitiu a remição de sua pena por trabalho. O projeto não é um projeto vinculado à escola da unidade, ou seja, não faz parte de atividades educacionais formais. No entanto, trata-se de práticas educacionais na medida em que possibilitam a criação e o aperfeiçoamento de atividades educacionais, de aprendizagem, de coletividade e de troca de experiências, pois, conforme apontam Onofre e Julião (2013, p. 52), “Pensar o universo da educação significa ir além do processo educativo institucionalizado, também denominado educação formal ou escolar, somando-se a ela as experiências educativas que ocorrem no cotidiano das pessoas, através do relacionamento com outras pessoas e com o seu ambiente”.
A classificação de atividades laborais e educacionais implica na remição de pena nos termos da legislação brasileira (Brasil, 2011). Desta forma, além de ser uma atividade de formação, pode se transformar em importante agente em uma perspectiva anti-prisional (Davis, 2018) e como uma ação de diminuição da prisão (Mathiessen, 1986) em uma perspectiva abolicionista.
A instauração do projeto cultural na unidade e sua consequente classificação articulam os documentos oficiais que preveem a remição e as atividades culturais, laborais e educativas nas prisões como direitos à produção de novos documentos que, ainda que no contexto específico da unidade prisional (como é o caso do documento que classifica a atividade), constituem-se como produtores de novas realidades, novas experiências e novos caminhos possíveis.
É certo que o status de trabalho classificado deste projeto cultural é contingente a uma série de forças e poderes específicos que se articulam em um momento também específico de uma unidade específica, de modo que pode a qualquer momento perder seu estatuto de trabalho classificado. Ele se equilibra sobre as linhas móveis que tornam possível determinado enquadramento capaz de sustentá-lo, diferentemente das políticas públicas que garantem o acesso a trabalho e educação nas prisões enquanto políticas de Estado. Ainda assim, nem mesmo o estatuto de política de Estado garante que estes direitos sejam devidamente respeitados em muitas circunstâncias, ou seja, também as políticas se equilibram nesta espécie de corda bamba. Estão, ambas, imbricadas nas disputas políticas e de poder que constantemente ameaçam/tornam possível a efetivação de ações educativas no contexto prisional.
Conclusões
As legislações, documentos e resoluções que versam sobre a educação nas prisões parecem ter como foco a garantia da educação como um direito humano, bem como discutir de que modos os processos educacionais podem se dar a partir das histórias de cada sujeito e como eles podem se desdobrar para além da escola, a partir de uma perspectiva ampliada de educação. Ainda, muitas das preocupações giram em torno das possibilidades e dificuldades de se promover processos educativos em espaços de privação de liberdade, considerando as complexidades destas instituições e os constantes desafios para a garantia de direitos das pessoas privadas de liberdade.
A leitura destes documentos, bem como experiências de pesquisa em instituições de privação de liberdade, indicam que o gênero, ainda que não declaradamente, constitui e articula práticas, discursos, saberes, cotidianos e relações e, portanto, é um potente analisador para pensar de que modos a prisão é edificada enquanto projeto de poder, controle e gestão dos corpos, mas também para pensar os modos como se organizam e se atravessam as experiências das pessoas privadas de liberdade. Ainda, pensar o gênero como categoria de análise para a leitura e cartografia de documentos sobre educação nas prisões nos permite acompanhar de que modos certas práticas, discursos e moralidades se atualizam, se mantêm e se desfazem, historicamente, no campo das prisões. Se, por um lado, os movimentos sociais feministas e as lutas anti-prisionais parecem ter conseguido ocupar algum espaço nos corpos vivos dos documentos de Estado, por outro ainda que estes mesmos movimentos venham buscando expandir as fronteiras do que se convencionou chamar “mulher” ou “prisão” ainda é possível identificar os processos que aperfeiçoam o controle de determinados corpos ao reduzi-los a experiências biológicas que colam à figura da “mulher” as experiências de maternidade e possíveis especificidades relacionadas a seus órgãos reprodutivos. Neste sentido, se podemos dizer que é um avanço em termos das lutas pelos direitos humanos ter garantias legais de que pessoas privadas de liberdade devem ser atendidas a partir de suas demandas singulares produzidas durantes seus processos de construção de vida e subjetividade, também é urgente questionar os movimentos e as narrativas que transformam “especificidades” vazias em naturalizações das diferenças entre os gêneros.
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