Interseccionalidade entre universidade e o cárcere a través do projeto vida
Intersectionality between university and prison throug the life project
Vanessa Pereira de Lima
Universidad del Estado de Río de Janeiro, Brasil
vanny.psico@gmail.com
Doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil (2015).
Graduada em Licenciatura no curso de Psicologia pela Universidade do Estadodo Rio de Janeiro (2017).
Membra do do Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras (GEPSID)
Anna Paula Uziel
Universidad del Estado de Río de Janeiro, Brasil
uzielaps@hotmail.com
Possui graduação em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988)
Graduação em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1991)
Mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1996)
Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (2002)
Professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Coordenadora do LIDIS – Laboratório Integrado em Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e Direitos
Pesquisadora associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ)
Membra fundadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Subjetividades e Instituições em Dobras (GEPSID)
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Resumo
O presente texto busca fazer uma reflexão sobre a interseccionalidade entre a universidade e o cárcere a partir da inserção de um grupo de psicólogas (voluntárias) convidadas em 2015 pela coordenação de psicologia da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) a compor a equipe do Projeto Vida e que também vem pesquisando gênero, sexualidade e processos de subjetivação na prisão do qual também faço parte. Assim, partimos desse encontro entre a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e SEAP-RJ para pensarmos de que maneira a universidade pode e deve entrar na prisão e até que ponto o Projeto vida alcança e produz subjetividades no interior desta. Para isso, traço uma cartografia dos relatos de nossa experiência em duas unidades prisionais: uma unidade de regime fechado na qual é conhecida por ser referência para a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) e uma unidade de regime semiaberto feminina.
Palavras-chave
Projeto Vida; universidade; prisão; interseccionalidade; cartografia
Resumen
El presente texto busca hacer una reflexión sobre la interseccionalidad entre la universidad y la cárcel a partir de la inserción de un grupo de psicólogas (voluntarias) invitadas en el 2015 por parte de la coordinación de psicología de la Secretaría de Estado de Administración Penitenciaria de Río de Janeiro (SEAP RJ) para formar parte del equipo del Proyecto Vida, y que también ha investigado género, sexualidad y procesos de subjetivación en la prisión, del cual también formo parte. Así, partimos de este encuentro entre la Universidad del Estado de Río de Janeiro (UERJ) y la SEAP-RJ para pensar de qué manera la universidad puede y debe entrar en la prisión y hasta qué punto el Proyecto Vida alcanza y produce subjetividades en el interior de esta. Para ello, trazo una cartografía de los relatos de nuestra experiencia en dos prisiones: una unidad de régimen cerrado que es conocida por ser referencia para la población de lesbianas, gays, bisexuales, travestis y transexuales (LGBT) y una unidad femenina de régimen semi-abierto.
Palabras clave
Proyecto Vida; universidad; prisión; interseccionalidad; cartografía
Abstract
The present study aims to make a reflection about the intersectionality between university and prison from the insertion of a group of psychologists (volunteers) invited in 2015 by the psychology coordination of the State Department of Prison Administration from Rio de Janeiro (SEAP-RJ), to join the Projeto Vida team and that has also been researching gender, sexuality and subjectivity processes within prison, which I also belong to. Thus, we start from this meeting between Rio de Janeiro State University (UERJ) and SEAP-RJ to think how the university can and should enter the prison and to what extent the Projeto Vida reaches and produces subjectivities within it. In order to achieve this objective, I draw cartography of the reports from our experience in two prison units: a unit of deprivation of liberty, which is known to be a reference for the lesbian, gay, bisexual, transvestite and transsexual (LGBT) population, and a female unit of semi-open prison system.
Keywords
Life project; university; prison; intersectionality; cartography
Recepción
10 de noviembre de 2018.
Aceptación
11 de abril de 2019.
Introdução
As prisões no Brasil têm apresentado números cada vez mais crescentes, resultados do que denominamos de “guerra às drogas” e o superencarceramento proveniente do aprisionamento das pessoas em situação de vulnerabilidade e pobreza, onde não há fronteiras para a criminalização dos conflitos sociais (Batista 2010). Segundo dados do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(INFOPEN), do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), ligado ao Ministério da Justiça divulgados em 2016, até junho a população carcerária brasileira apresentava 726.712 pessoas privadas de liberdade sendo 368.049 o número de vagas com déficit de 358.663. A taxa de ocupação era de 197,4% e a taxa de aprisionamento de 352,6 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. O número de pessoas presas provisoriamente é alarmante, 40% não haviam sido julgadas ou condenadas. Quanto ao perfil, 55% são pessoas entre 18 e 29 anos e 64% são negras. Ao que diz respeito a escolaridade, 51% não concluiu o ensino básico e apenas 12% da população prisional estava envolvida com alguma atividade educacional. Assim, a violência e consequentemente a prisão é “fundamentada em uma política de tolerância zero, de higienização da cidade, contraditoriamente, no discurso, é apresentada como uma proposta de segurança cidadã” (Julião 2017:121).
A partir dos dados expostos acima é possível pensar qual o lugar que a educação ocupa na prisão (e fora dela) quando o número de pessoas encarceradas não para de crescer. Para Pereira
Legalmente, a educação no cárcere é um tipo de educação de adultos que visa escolarizar, formar e qualificar pessoas temporariamente encarceradas para que, depois que cumpram o tempo de privação da liberdade, possam reinserir-se com dignidade no mundo social e do trabalho, já que essas pessoas, em sua maioria, têm baixa ou nenhuma escolarização. Nesse sentido, grande parte dessas pessoas presas necessita de uma educação ampla e diferenciada para que adquiram conhecimentos, saberes e práticas que lhes possibilitem a (re)construção de sua cidadania, se é que em algum momento de sua vida social e produtiva ela foi ou se sentiu cidadã (Pereira 2011:40).
Além das escolas nas unidades prisionais, criou-se como alternativa para que minimamente as pessoas pudessem ter acesso à informação, o Projeto Vida, no qual fomos convidadas em 2015 a participar do ciclo de palestras e oficinas daquele ano. A parceria deu tão certo que continuamos nos anos seguintes. Mas, como veremos adiante, por mais boas intenções que se possa ter, o projeto tem pouco alcance visto o tamanho e crescimento exponencial da população carcerária, sendo muitas vezes uma tentativa de minimizar a precariedade da vida na prisão através das próprias pessoas privadas de
liberdade e não do estado. Este texto pretende refletir a partir da nossa inserção no Projeto Vida como a universidade pode entrar na prisão e quais potências é possível articular através dos grupos e oficinas realizados com pessoas trans e mulheres cis5 nas prisões do Rio de Janeiro.
O Projeto Vida
O Projeto Vida é desenvolvido pela Coordenação de Psicologia da SEAP desde 1995 quando teve início na Penitenciária Esmeraldino Bandeira no complexo penitenciário de Gericinó, no bairro Bangu. Seu foco é a promoção de saúde e cidadania junto às pessoas presas em regime fechado e semiaberto, como também egressas(os) do sistema penitenciário. O trabalho procura mobilizar diferentes recursos humanos e físicos, o que deveria conferir uma abordagem multidisciplinar dentro da SEAP, englobando parceiros entre as diversas Coordenações: Administração, Psicologia, Saúde, Inserção Social, Serviço Social, Segurança, Informática e Assessoria de Comunicação. Além disso, sua articulação se dá basicamente através da rede extramuros, alcançando instituições jurídicas, sociais, de saúde, de pesquisa e estudo, tanto públicas quanto privadas.
Ao longo do ano é oferecido ciclos de palestras e/ou oficinas de Saúde e Cidadania, cujos objetivos são despertar o interesse das pessoas que se encontram privadas de liberdade e egressas para a promoção e manutenção da qualidade de vida, da saúde e da cidadania, além de valorizar e estimular os potenciais dessa população; promover espaços de discussão sobre temas relacionados à Cidadania e Direitos Humanos e informar sobre prevenção e tratamento, na perspectiva da redução de danos, ao uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas. Após inscrição para quem demonstrar interesse6 as oficinas são realizadas ao longo do ano e ao final estes se tornam monitores em prevenção, promoção de saúde e cidadania tanto dentro quanto fora do Sistema Prisional. Nesses 23 anos em que o Projeto Vida encontra-se em execução foram formados um pouco mais de 800 monitores (Silva, Nadaes, 2014). Alguns dão continuidade ao trabalho após formados, outros devido a progressão de regime ou por exercer alguma outra atividade na unidade prisional acabam não podendo dar continuidade ao trabalho como monitor do Projeto Vida. Mas toda a informação adquirida pode ser multiplicada para outros internos, familiares, inspetores de segurança, professores, equipe técnica. Nesse sentido, a propagação dessas informações acaba por alcançar indiretamente um número muito maior de pessoas.
No ano de 2018, o Projeto Vida ocorreu em 9 unidades prisionais (Silva; Nadaes, 2014). Ao final do ciclo de palestras e oficinas é realizada a cerimônia de conclusão anual com os internos que participaram das atividades. Estes são estimulados a desenvolver atividades voltadas para a saúde, qualidade de vida e cidadania a partir da realidade de cada unidade prisional, articulando ações que melhorem a saúde e qualidade de vida dos mesmos.
Os temas abordados nas palestras e oficinas atualmente são:
- Meio Ambiente e Vida: Educação Socioambiental;
- Resiliência: Resistência e Superação;
- Convivência Familiar: Novas Configurações Familiares;
- Diversidade e Gênero;
- Sexualidade Humana;
- DST/HIV – AIDS;
- Relacionamento Interpessoal, Mediação de Conflitos e Facilitação de Diálogos;
- Autonomia: Diga Não às Dependências;
- Cidadania, Direitos Humanos, Diversidade e Cultura de Paz: um direito de todos;
- O que é ressocialização;
- Primeiros Socorros;
- Cuidados pessoais e
- Temas referentes aos direitos da mulher.
Universidade, prisão e seus desafios
Vimos que, pelos dados do INFOPEN, a população carcerária tem crescido e junto com esse crescimento aumenta os problemas na/da prisão, principalmente, os que dizem respeito a educação ou o acesso a informação de modo geral. Por realizarmos pesquisas anteriormente em algumas unidades prisionais femininas, fomos convidadas para participar do Projeto Vida em outras unidades. Desde nossa primeira entrada na prisão o gênero era acionado como dispositivo que fazia com que colocássemos em análise o que significava pesquisar nessa instituição. Quando íamos8 nos presídios masculinos o regime de segurança era maior. Tínhamos que ter cuidado com nossas roupas, afinal, tratava-se de um presídio masculino, era o que nos recomendavam. Não podíamos usar nenhum meio digital, gravador, pendrive ou celular. Nos presídios femininos era recorrente escutarmos que as “mulheres”9 davam trabalho, não respeitavam e eram desafiadoras. Mas, ao longo de nossas idas, pudemos ver e viver as dificuldades da prisão. Se para nós, pesquisadoras, as dificuldades eram inúmeras, imagina para eles e elas que estavam privados de sua liberdade?
Ainda que fôssemos voluntárias e previamente passássemos os nossos dados para a autorização de entrada no estabelecimento prisional, encontrávamos dificuldades na portaria das unidades, muitas vezes a autorização não tinha sido encaminhada o que fazia com que perdêssemos tempo aguardando ao lado de fora. Uma vez dentro da unidade a dificuldade era a disposição de um lugar para que as oficinas pudessem ser realizadas. Em outros momentos estava tendo operação em alguma cela na tentativa de encontrar drogas e celulares, nesses episódios, também não era possível entrar e tínhamos que retornar sem realizar as oficinas. Vale ressaltar que as dificuldades de adentrar em estabelecimentos prisionais ocorrem em diferentes lugares e países da América Latina onde o hiperencarceramento ocorre sobretudo nos países de fronteiras.
As dificuldades de entrar nas prisões fez com que o tempo se tornasse um analisador importante para pensarmos os desafios perpetrados pela prisão, não só de quem está privado(a) de liberdade, mas para nós, pesquisadores(as) ou voluntários(as) no Projeto Vida. O tempo da instituição se misturava com o tempo das pessoas privadas de liberdade e com o nosso longo tempo de espera. Quando chegávamos nas unidades parecia que o tempo passava a uma cronologia diferente. A instituição-prisão demonstrava que o tempo era precioso e não podia ser perdido com “bobeiras”. Os guardas estavam sempre com ar de ocupação, se locomoviam de um lado para outro, sempre vigiando qualquer movimento. Entre o tempo da instituição que nos colocava como perturbadores da ordem, já que precisavam dispor de uma sala para pudéssemos realizar as oficinas, além da espera ao lado de fora, ainda tínhamos que aguardar o tempo da senha para que as pessoas pudessem chegar até o local que ocorreria as oficinas. Por fim, o último tempo do qual gostaria de falar é o da saída. Após as oficinas saíamos tão desgastadas que precisávamos por vezes respirar em algum lugar e compartilhar as nossas angústias. Sair da prisão após algumas horas se mostrava libertador, mas angustiante ao mesmo tempo pelos que lá ficavam.
Os percalços encontrados apontam que as “relações de poder/saber predominantemente enrijecidas e verticais tendem a colocar a comunicação a serviço do controle” (Leite 2014:799), assim, ocupávamos muitas vezes do ponto de vista institucional, o lugar de quem não conhecia o que é cadeia e, portanto, precisávamos também ser tuteladas. Apresento a seguir relatos das oficinas realizadas e que nos possibilitam pensar de que modo a universidade entra na prisão e a prisão entra na universidade.
Oficina sobre família
Na unidade masculina referência para a população LGBT realizamos uma oficina sobre família. Disponibilizamos revistas e cartolinas para que em grupo fizessem colagens a respeito do tema família para depois abrirmos para discussão. O grupo foi composto por 40 pessoas entre gays, travestis e mulheres transexuais onde trouxeram questões relevantes para pensarmos os fluxos entre dentro e fora da prisão e como a família muitas vezes se mostrava para além de suporte emocional, mas também como garantidora do acesso a objetos tidos socialmente como femininos, bem como o fornecimento de hormônios para manter o corpo, assim, as disputas em torno de quem era mais feminina que a outra estava relacionado, muitas vezes, com o acesso aos hormônios que ajudava a manter tal feminilidade. Não obstante, eram relatados sentimentos de saudades ao mesmo tempo em que os conflitos eram expostos como sendo o motivo principal de afastamento, geralmente, relacionados a aceitação da orientação sexual e identidade de gênero. Por ser uma unidade situada na zona norte do Rio de Janeiro, alguns relatos como esta unidade ser melhor para receber visitas também surgiram. Esta unidade fica situada entre inúmeras linhas de ônibus, metrô e trem. Por ser uma unidade de regime fechado10 esse momento também era de reencontro entre quem estava em outras celas, logo, era difícil ouvirmos a todos(as). Como éramos quatro psicólogas, nos dividimos cada uma em um grupo. No grupo em que fiquei uma pessoa sentou ao meu lado e confidenciou o seu desejo de iniciar o uso de hormônios dentro da prisão, mas temia como seria o encontro com sua família ao performatizar (Butler 2003) o feminino. Suas estratégias então era apenas usar brincos e maquiagem, algo que visto sem, não denunciariam seus desejos. Então, nos dias de visita, se apresentava como a mãe a conhecia antes de entrar na prisão. Em seguida, diz que é melhor esperar sair, assim, poderia ir para outro lugar realizar tais modificações corporais sem que sua mãe pudesse fazer algo além de aceitar, pois não teria como reverter a situação (Lima, 2019). Para Butler (2003), o gênero é performativo, ou seja, não existe em nós uma realidade interna, uma verdade sobre ser homem ou mulher, o que existe é uma produção e reprodução de discursos que fabricam e regulam a sexualidade em torno de uma matriz heterossexual. Essa matriz acaba por reforçar a produção de feminilidades e masculinidades no interior das prisões onde muitas vezes a garantia de alguns direitos ficam suprimidas, como por exemplo o direito à visita íntima. Durante esses encontros apenas um homem que se autoidentificava enquanto gay recebia visitas íntimas de seu companheiro, uma vez que era necessária a comprovação de união estável11. Tal comprovação acaba sendo um impedimento, vez que a união estável no Brasil para casais homossexuais é recente e pouco informada, além de muitas pessoas não terem a pretensão de oficializarem suas relações, assim, o poder do estado segue regulando e regulamentando vidas, no caso da prisão, essa regulação acaba por promover mais afastamento entre familiares, filhos(as) e cônjuges das pessoas privadas de liberdade.
O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua realidade. Isso também sugere que, se a realidade é fabricada como uma essência interna, essa própria interioridade é efeito e função de um discurso decididamente social e público, da regulação pública da fantasia pela política de superfície do corpo, do controle da fronteira do gênero que diferencia interno de externo e, assim, institui a “integridade” do sujeito. Em outras palavras, os atos e gestos, os desejos articulados e postos em ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora […] Se a verdade interna do gênero é uma fabricação, e se o gênero verdadeiro é uma fantasia instituída e inscrita sobre a superfície dos corpos, então parece que os gêneros não podem ser nem verdadeiros nem falsos, mas somente produzidos como efeitos da verdade de um discurso sobre a identidade primária e estável”. (Butler 2003:194-195).
Diante do exposto anteriormente outras questões foram surgindo, como por exemplo, a produção de feminilidades que se dão basicamente pelos fluxos entre dentro e fora e que acaba sendo um meio de solidariedade, mas também de comercialização de utensílios tidos por nós como femininos para aquelas que não recebem visitas, vindo ser o tema de minha dissertação de mestrado, cujo título é “O que papai do céu não deu, a ciência vende”: feminilidades de mulheres trans e travestis em privação de liberdade.
As mazelas do sistema prisional se estendem para as unidades femininas, onde em oficinas realizadas em uma unidade de regime semiaberto os sentimentos de abandono eram relatados de inúmeras formas. Era recorrente falas como “aqui somos muito abandonadas. Nos presídios masculinos os homens recebem visitas, aqui somos abandonadas”. Essas falas eram relacionadas ao fato de serem mulheres privadas de liberdade, muitas vezes legitimando a ausência dos companheiros como sendo mais fácil para os homens receberem visitas de seus familiares e íntima, por vezes, quando se encontram na mesma situação esses companheiros não visitam, ora devido a maioria das vezes se encontrarem com dívidas na justiça, ora por já terem outro relacionamento no fora. Para as mulheres que têm filhos, esse afastamento se estende para os familiares, onde muitas vezes outras mulheres (mães, tias, irmãs, etc) estão cuidando de seus filhos.
O cuidado com os filhos fica a cargo de mulheres, sendo a prisão muitas vezes relacionada como traição a uma suposta essência feminina que escolheu o mundo do crime em detrimento do cuidado aos filhos. Tal essência tem a finalidade de punir duplamente, em especial às mulheres, seja pelo crime cometido, seja pelo “fracasso da maternidade”, afinal, o “mundo do crime” é relacionado ao universo masculino, embora a população carcerária feminina tem aumentado12. Em um dos encontros pelo Projeto Vida na unidade feminina semiaberta levamos o texto de Cris Pizzimenti “Sou feita de retalhos”13 e após a leitura abrimos para o diálogo para pensarmos quais os retalhos que nos constitui. Ouvimos pessoas reincidente dizendo que suas idas e vindas da prisão estava ligada à falta de amor ao lado de fora, nem sempre ao amor familiar, mas de uma sociedade que não aceita com bons olhos pessoas egressas do sistema penitenciário.
Uma das participantes compartilhou a experiência e sua percepção acerca de um evento que ocorreu na prisão. Em seu relato diz que em um curso de cabeleireiro que ocorrera, tiveram a ideia de cortar os cabelos e doarem para alguma instituição que fabricava perucas para pessoas com câncer. A professora sugeriu gravar vídeo das pessoas falando a respeito da atitude que tiveram e para surpresa da maioria, os comentários eram negativos, apesar da atitude que tiveram de doar os cabelos. A participante se sentiu injustiçada, acreditava que sua atitude pudesse ao menos fazer com que as pessoas pensassem diferente a respeito das pessoas privadas de liberdade, que eram capazes de fazer algo bom, em suas palavras, mas o crime cometido sobressaltava a atitude nobre que tiveram. Outra participante nos conta a respeito do livro que está escrevendo onde pretende revelar os descasos que ocorrem nas prisões femininas que em sua opinião faz com que a pessoa privada de liberdade perca a dignidade atrás das grades, criando assim um monstro. Em suas palavras “você não tem nada, vem alguém que te oferece R$100,00 para guardar um celular, você não tem nada, você aceita”. Ouvimos frases como “não aceito quem cometeu crime contra filho ou neto porque eu estou morrendo de saudades dos meus”.
As oficinas sobre família possibilitaram pensarmos uma cartografia dos afetos que circula dentro e fora da prisão. Se por um lado há um rompimento com a família do fora, na prisão é possível fazer família. A possibilidade de criação de laços de proteção, afeto, econômico e sexual é uma realidade nas prisões. Por vezes a figura “mãe de cadeia”, “irmã de cadeia” ou “pai de cadeia” é acionado como forma de reconhecimento e garantias no cumprimento da pena. Formar família é mais uma das inúmeras maneiras de suportar a vida atrás das grades (Lima, 2019). Na oficina com a população LGBT em um dos cartazes havia a assinatura das participantes. Notamos que ao lado dos nomes vinha um sobrenome comum à todas. Ao perguntarmos a resposta foi certeira “somos uma família”. Neste caso, o sobrenome adotado garantia diante do coletivo o reconhecimento de certa união. Essas relações familiares já existem fora do cárcere no universo das travestis e algumas transexuais, sendo comum o estatuto de mãe ou madrinha àquelas que apresentou o mundo das ruas, como e onde colocar hormônios e silicones, além de uma sociabilidade trans* (Lima, 2019).
Oficina sobre direitos
Pensar os direitos é pensar em cidadania e estar privado(a) de liberdade não significa a supressão de direitos básicos como o acesso a educação. Qualquer tipo de educação seja oferecido pela escola ou através do Projeto Vida é a maneira pela qual as pessoas privadas de liberdade podem acessar informações, principalmente, sobre direitos. O encarceramento de pessoas LGBT acontece de inúmeras formas, seja no corpo, nas regras binárias que aprisionam os gêneros, na inscrição e reiteração de feminilidades ou masculinidades que vai além de passar por, mas como sobreviver aderindo a inscrição e reiteração de feminilidades e masculinidades em um país que mais mata pessoas trans? (Lima, 2019). Como aponta o mapa de assassinatos da Associação Nacional de Travestis e Transexuias (ANTRA) que em 2017 levantou o assassinato de 179 pessoas trans, dentre elas 169 travestis e mulheres transexuais e 10 homens trans, aproveito para lembrar que o mapa desse ano já aponta até o presente momento o assassinato de 122 pessoas.
Diante dos dados aqui expostos, podemos concluir que nossa sociedade punitivista não encarcera apenas nas prisões físicas, mas há um encarceramento do eu e de um coletivo que ousa desafiar os padrões normativos socialmente estabelecidos. Uma triste realidade que tem apontado a estigmatização e a violência contra as travestis e pessoas transexuais, que cerceadas de liberdade ao construir uma outra identidade nesse corpo visto como ilegítimo, não humano, têm como fim atos de violência (Lima, 2019). A violência e a exclusão que as travestis e pessoas transexuais sofrem é parte estruturante de uma sociedade que tem como valor a cisheteronormatividade e não reconhecem como legítimas outras identidades, marginalizando e amolando facas (Baptista 1999) cada vez mais afiadas contra essa parcela da população.
Em um segundo contato com o grupo durante o Projeto Vida, foi realizada uma atividade sobre os direitos previstos na Resolução 558 de 29 de maio de 2015 que estabelece diretrizes e normativas para o tratamento da população LGBT no sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, bem como a Resolução Conjunta nº1, de 15 de abril de 2014, da Presidência da República e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD). Participou desta atividade o mesmo grupo anterior, onde pedimos que escrevessem em uma folha de papel em branco quais direitos tinham conhecimento e que se pudessem participar da construção de um documento como as resoluções apresentadas, o que achavam que deveria constar que garantisse e assegurasse a passagem na prisão.
Em decorrência de uma visita que tinham recebido anteriormente do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (NUDIVERSIS), da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, muitas conheciam os diretos previstos nas resoluções. Então pedimos que se dividissem em grupos e discutississem a respeito dos direitos e ao final abrirmos para um debate maior. Durante as discussões, inúmeras violações de direitos foram relatadas. Apesar de constar nas resoluções que a pessoa travesti ou transexual tem o direito de ser chamada pelo nome social, de acordo com o seu gênero, muitas relataram não ter o nome social respeitado nas senhas de atendimento, constando o nome de registro, o que causa constrangimento e desconforto (Lima, 2019). Em uma das entrevistas na minha pesquisa de mestrado pude vivenciar um desses momentos, quando Kethelen, uma das participantes chegou para começarmos a entrevista e disse em tom chateada que foi chamada pelo nome de registro na frente de todos e isso lhe causou constrangimento.
As resoluções em seus textos apresentam que as travestis e aos homens gays, afim de garantir sua segurança, caso desejem, serão garantidos espaços de convivência
específico. Sobre este tópico, disseram que não necessariamente querem um alojamento separado, já que têm companheiros e desejam ficar perto deles, sendo assim, não seria interessante, pois quebrariam o único vínculo (para a maioria) afetivo e sexual (Lima, 2019). Um fato curioso que aconteceu em meu primeiro dia de pesquisa foi quando um guarda na recepção ao interpelar meu projeto e ao responder que era com as mulheres trans e… antes que eu terminasse ele logo afirmou que “ali não tinha mulheres, caso contrário, elas estariam no presídio feminino”. Tentei argumentar e disse que existia uma resolução caso elas desejassem e novamente fui cortada ao ouvir eles, os guardas, dizendo que isso seria um absurdo porque as “mulheres iriam engravidar”. O que ameaça é o órgão sexual, nesse caso, o pênis (Lima, 2019). Há um imaginário que o fato de mulheres trans não operadas e travestis possuírem um pênis as tornassem potencialmente perigosas para as mulheres cis, como possíveis estupros e gravidez. Como ainda ressaltaram que se fossem mulheres eles não poderiam fazer a revista, no entanto colocar guardas mulheres para fazer também não daria certo, já que teriam que ver ou manipular o pênis. Qualquer tentativa de negociação era perdida, eles já tinham seus argumentos reforçados por uma sociedade patriarcal e machista.
Estudar as prisões e suas relações no campo da sexualidade, gênero e processos de subjetivação é algo que se faz necessário como possibilidade de construção coletiva e produtora de novos enunciados. Aos poucos, através da militância LGBT, dos movimentos sociais e da academia alguns direitos têm sido conquistados, ainda que precariamente, pois a formação e capacitação dos agentes de estado quanto a questão LGBT no cárcere ainda requer atenção, bem como fiscalização. Cabe ressaltar que muitos agentes penitenciários após a entrada no concurso não têm formação quanto às portarias e resoluções voltadas para a população LGBT em privação de liberdade. Como ferramenta metodológica a cartografia no campo da pesquisa qualitativa leva em consideração as especificidades da população em situação de privação de liberdade onde a ideia é capturar as intensidades e tensões dos encontros, desvelar através das experiências cotidianas através de quem as vive, desnaturalizar, produzir afetos, onde o encontro com o outro acontece. Sabemos que instituições fabricam modelos e formas identitárias, no entanto, é possível pensar que outros modos de viver possam ser instituídos e buscamos cartografar esses outros modos.
A cartografia é um método de investigação que não busca desvelar o que já estaria dado como natureza ou realidade preexistente. Partimos do pressuposto de que o ato de conhecer é criador da realidade, o que coloca em questão o paradigma da representação. (KASTRUP & PASSOS, 2013, p.264). Cartografar é conectar afetos que nos surpreendem e, para tanto, na formação do cartógrafo é preciso ativar o potencial de ser afetado, educar o ouvido, os olhos, o nariz para que habitem durações não convencionais, para além de sua função sensível trivial, ativando algo de supra-sensível, dimensão de virtualidade que só se amplia à medida que é exercitada. (POZZANA, 2013:336).
Considerações finais
Este trabalho apresentou, a partir da cartografia realizada no Projeto Vida como a universidade pode entrar no cárcere, seja através de pesquisas ou como voluntárias do Projeto Vida. Participar deste projeto ao mesmo tempo em que lança luz na inserção da universidade no cárcere, também apresenta os desafios institucionais para a entrada na prisão, bem como o pouco alcance que o projeto tem visto o aumento alarmante do sistema penitenciário brasileiro. Tal crescimento está diretamente ligado à política de drogas que tem encarcerado em massa pessoas pobres, negras e usuárias de drogas. Tal encarceramento indiscriminado resulta em superlotação, diminuindo as oportunidades de trabalho e educação no sistema penitenciário. Como mais uma alternativa de “ressocialização” o Projeto Vida surge como meio de instrumentalizar pessoas acerca de temas relacionados a saúde e cidadania para serem multiplicadores em suas celas. Apesar do projeto ter boas intenções, o alcance ainda é pouco, pois em uma unidade com 3.000, 4.000 pessoas privadas de liberdade, 35 pessoas no projeto acabava sendo baixo frente ao número total de encarcerados(as), no entanto, era o máximo que poderia ter por motivos de segurança.
Durante a cartografia traçada nos grupos, tentamos trazer uma narrativa mais próxima do que vivenciamos. Os afetos que circulavam traziam a dimensão do aprisionamento na vida dessas pessoas e nos fazia deslocar nosso olhar para lentes distorcidas daquilo que não se quer enxergar: a prisão (Lima, 2019). Cartografar a prisão em sua multiplicidade é pensar o que possibilita traçar um plano comum (Kastrup, V., & Passos, 2015) em meio aos dispositivos de segurança que acionados, dificultavam nossa inserção e limitava os números de participantes. Assim, o acesso ao Projeto Vida era restrito à uma pequena parcela da população carcerária, evidenciando mais uma vez a dificuldade do acesso à educação no interior das prisões.
Parece importante pensar na relevância de estudos sobre/na/da/a prisão no campo da interseccionalidade entre a universidade e o cárcere que busquem conhecer os fluxos e afetos de pessoas privadas de liberdade que possibilite pensar de que maneira a universidade pode entrar no cárcere. Através das oficinas realizadas no Projeto Vida pudemos mergulhar na geografia dos afetos tecidos no encontro, na pluralidade de vozes que desejavam falar. Participar do Projeto Vida durante esses quatro anos enriqueceu nosso olhar a respeito do sistema carcerário. Nossa permanência carregada de afetos e afetações ampliou nosso olhar para as dificuldades do sistema penitenciário no Brasil, principalmente, no estado do Rio de Janeiro onde o Projeto Vida é realizado.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Referencias bibliográficas
- Baptista, L. A. (1999). A atriz, o padre e a psicanalista – os amoladores de facas. In Cidade dos sábios (pp. 45-49). São Paulo, Brasil: Summus.
- Batista, N. (2010). Introdução. Sessão de Abertura. In Abramovay. P. Vieira & Batista, Vera Malaguti. (Orgs.). Depois do grande encarceramento. Seminário. Rio de Janeiro, Brasil: Revan.
- Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. (Trad. Renato Aguiar). Rio de Janeiro, Brasil: Civilização Brasileira.
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